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Sobre Bangu e o Brasil


Sem dúvida que uma das forças motrizes da pesquisa em história é a curiosidade, normalmente proveniente de uma dúvida sobre algo que não foi explicado ou que não se encaixe, no entanto, em outros momentos é por puro prazer de aprender algo mais. Assim se justifica uma pesquisa sobre o bairro suburbano de Bangu, local próximo a minha história pessoal e de muitos que conheço.
            A imagem recente de Bangu é estigmatizada pelo complexo presidiário e suas acomodações, assim como os “ilustres” personagens que o habita. Na historiografia recente o bairro assume a responsabilidade de sediar a primeira partida de futebol no Brasil, talvez não de caráter oficial, mas foi ali que a bola rolou pela primeira vez, conduzida por operários ingleses, que após chegarem em 1891 imprimiram sua passagem com diferentes sinais culturais e arquitetônicos. No entanto, quais seriam os pontos de interseção da História do bairro com a história do país?
            Em qualquer livro didático de História somos informados pela memória oficial quais são os acontecimentos no período da criação da fábrica Bangu: o país está no fim do império e início da república; a abolição da escravatura é um fato recente e os centros urbanos seguem a construção de um projeto progressista.
            Nos centros de maior importância das províncias, as melhorias do serviços urbanos concretizavam-se rapidamente, revelando de alguma forma o desenvolvimento econômico local: luz, transporte público, água encanada, calçamento, pontes e parques tomavam os espaços públicos das cidades, dando-lhes características que as aproximavam dos centros urbanos mais modernos da Europa. A maioria desses serviços urbanos foi realizada por empresas estrangeiras, sobretudo inglesas[1].”

No entanto, as narrativas superficiais dos livros didáticos não dão conta dos processos que constroem estes marcos. Por exemplo: a distribuição da água na capital (Rio de Janeiro), conforme levantamento dos pesquisadores [2]Rodrigo Elias e Marcello Scarrone, em 1889 havia um pensamento na sociedade, devido ao discurso científico de médicos e cientistas que correlacionava a má gestão da água com as epidemias tropicais que a cidade sofria mais precisamente a febre amarela. O problema, que havia ficado sobre a conta do Ministério da Agricultura, tinha a previsão de solução, com os seus engenheiros, de 40 dias, no entanto, devido à comoção pública motivada pelo debate ferrenho de dois periódicos a figura do engenheiro Paulo de Frontin é alçada a fama por apresentar e cumprir um projeto de aumento do fluxo de água para a cidade em mais 17 milhões de litros de água proveniente de fontes da serra de Macacu, desmoralizando o governo imperial, demonstrando sua incompetência em tentar negociar com proprietários de terrenos próximos a corte a compra de mananciais por 400 contos de réis, enquanto no projeto de Paulo de Frontin a compra de mananciais na serra custou menos de 90 contos. Este episódio demonstra a importância da água para que a cidade fosse estabelecida e pudesse contar com estruturas salutáveis em sua manutenção. E em Bangu? Bem, em Bangu conforme a historiadora Gracilda Alves o bairro começou a ser formado a partir da fábrica, ou melhor, à época Companhia Progresso Industrial do Brasil, e devido à falta de confiança no abastecimento de água na região urbana, descartou-se a possibilidade de instalação da Companhia na área da Tijuca, mas para compensar o distanciamento da capital e dos portos, buscou-se um local próximo a linha férrea da Central, assim o logradouro da freguesia de Campo Grande próximo a povoação de Realengo se tornou o eleito.

A companhia passou então a desenvolver uma política de compra de novas áreas, objetivando proteger os mananciais existentes, incorporar novas fontes de fornecimento de águas e ampliar as áreas florestais que os cercavam. Assim, a 20 de setembro de 1890 é efetuada a compra de uma data situada no Guandu do Sena por dois contos de réis; em 30 de abril de 1891, a de um sítio com uma cachoeira na fazenda do Guandu do Sena por um conto e 500 mil réis; a 29 de agosto de 1892, a de três lotes na Fazenda do Guandu, por 24 contos e 400 mil réis; enquanto a 6 de abril de 1905 são adquiridos as nascentes do rio da Prata Cabuçu, além de outras terras no Viegas e no Rosário[3].”

Através do custo de aproximadamente 30 contos de réis a companhia conseguiu um abastecimento, conforme descrito no periódico da Gazeta de notícias[4] em 1895:

“Para isso adquiriu a companhia em Campo Grande cerca de 3.400 hectares de terrenos, nos quaes existem manaciais que fornecem à fábrica mais de 2 milhões de litros diários por meio de um encanamento de ferro de 0m,25 de diâmetro e 6,500 metros de extensão”

                Apesar de não ser um volume de água tão abundante como o conseguido por Paulo de Frontin era mais que suficiente para a população do “bairro” de aproximadamente 1.400 pessoas (entre homens, mulheres e crianças) que se limitava aos operários da fábrica, no qual habitavam nas 95 casas construídas pela empresa em seu entorno.
            Quanto aos primeiros moradores do “bairro”, devido à obra de Gracilda Alves temos algumas pistas:



Figura 1[5] – Operários na Olaria em 1892 – Arquivo de Antenor Ferreira “Nonô”

 Figura 2[6] –Operários da Seção de Cardas (1892) – Arquivo de Antenor Ferreira “Nonô”


Nas duas imagens acima é possível notar a presença de negros, mulheres e crianças, estas últimas também são citadas no periódico Gazeta de Notícias em reportagem sobre a fábrica, como parte integrante do corpo de trabalhadores, mas o curioso é perceber que em 1891 em outra reportagem sobre a freguesia de Campo Grande é noticiado um acidente envolvendo duas crianças de 14 anos que ao brincarem na fábrica com equipamento local, uma sai ferida e outra morre na hora. Como o inquérito foi investigado pela subdelegacia da freguesia de Campo Grande, cabe uma pesquisa nos arquivos para compreender o motivo pelo qual notícia não questionar o acesso das crianças ao parque industrial ou o porquê do jornal utilizar a palavra brincar, quando a ocorrência parece se tratar de acidente de trabalho. Aliás, seleção é a palavra chave para se ler os periódicos, a todo o momento é preciso perceber que não é qualquer notícia capaz de conquistar uma vaga na página, pois além do acidente envolvendo as crianças, apenas a morte de um inglês de conculsão cerebral também é noticiado em 1891, devido a gravidade da violência, enquanto que na região urbana, assassinatos e golpes são publicados constantemente, tal como a reportagem conto do Vigário em 28 de Março do mesmo ano que narra um caso que contou com a ajuda do citadino José Joaquim de Lima, que  enquanto passeava pelo Largo de São Francisco encontrou com Joaquim Silveira Sampaio, um gatuno, que se apresentou como morador da freguesia de Campo Grande e lhe solicitou ajuda para encontrar um endereço para entregar 5 mil réis, os quais seriam para distribuir aos pobres, conforme a reportagem Sampaio fazia parte de uma quadrilha de falsário e gatunos que contava com a boa vontade alheia para conseguir efetuar novos roubos, no entanto, sofreu uma volta de Lima que conseguiu prendê-lo e ao seu parceiro e entregá-los à polícia. Neste episódio, pelo menos um ponto é interessante: o uso, pelo gatuno, da freguesia de Campo Grande para informar a sua origem, denotando assim que o imaginário local seria que as pessoas do subúrbio (neste caso, ligado a fazendeiros), possuíam certa inocência a lidar com estranhos, assim como a figura folclórica do capial na nossa contemporaneidade.
Já em 1895, com a fábrica estabelecida e o bairro se desenvolvendo ( afinal já existia água encanada, linha férrea para o transporte de pessoas, casas e agência dos Correios), um debate na Câmara questiona a prática da exportação de matéria prima e a importação de bens manufaturados, ora na historiografia acadêmica o liberalismo era um dos pensamentos correntes referente à economia e o imperialismo britânico se fazia sentir pelas suas participações na economia e instalações de fábricas nos países com quem fechava acordos internacionais em toda a América latina, e neste debate o Deputado José Carlos de Carvalho apresenta um discurso de defesa na taxação dos produtos ingleses enfrentando a posição mantida pelo deputado Arthur Rios, que curiosamente hoje em dia empresta seu nome a uma das ruas mais importantes do bairro de Campo Grande. Ainda nesta ocasião o Sr. José Carlos (como noticia a Gazeta em 8 de Dezembro de 1895) informa a câmara a composição do parque fabril de tecidos no país e de como ele se desenvolveu, além disso destaca a qualidade do algodão brasileiro exportado para Inglaterra sendo uma matéria prima superior ao que a Índia, colônia britânica, trabalhava, no entanto, os tecidos que retornavam processados pela Inglaterra possuíam baixíssima qualidade se comparado com os nacionais. Sr. Jose Carlos acusa que a defesa de Arthur Rios em não dificultar a concorrência do material fornecido pelos ingleses no mercado interno se dá devido tal situação beneficiar o próprio deputado baiano que possuía contato com a empresa britânica e uma fábrica de tecidos no nordeste que tirava vantagem da situação. Dentre os tecidos apresentados na Câmara pelo Sr. José Carlos como prova da qualidade superior dos tecidos nacionais está o tecido da fábrica Bangu que além de se destacar pelo patrimônio na capital da república possuía qualidade em seus produtos.
Em sua obra: Os bestializados, José Murilo de Carvalho cita a seguinte situação:

“O código criminal de 1890 teve a mesma inspiração [enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento dos direitos sociais] Tentou proibir as greves e coligações operárias, em descompasso com as correções que já se faziam na Europa à interpretação rígida do príncipio da liberdade de contrato de trabalho. Foi a ameaça de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio que forçou o governo a reformar logo os artigos que continham a disposição antioperária(205 e 206)[7]

Sobre esta luz, talvez consigamos entender o que houve em 1896 quando o mesmo periódico informou à população sobre a greve na Fábrica Bangu, os trabalhadores cruzaram os braços, suas reivindicações:

            “Prevalece o motivo da greve,como noticiamos. Os operários pedem à directoria da fabrica, além da baixa do preço de aluguel das casas que habitam, que lhes garanta a directoria os seus dias de trabalho. E isto porque muitas vezes vão à fábrica à hora do ponto e ficam impossibilitados de trabalhar porque, por falta de carvão, não funccionam os apparelhos motores(...) Pouco depois veio a seu encontro (Delegado Dr. Carijó) uma commissão de operarias fallando em nome de todas uma d’ellas, pedindo que o Dr. Carijó soltasse os operários presos”

Ora, a fábrica no momento de sua inauguração vendeu ações tendo como garantia seu patrimônio, dentre eles as casas em seu entorno, por isso as casa eram alugadas, no entanto o desabastecimento de carvão para as máquinas era de responsabilidade da companhia, sem elas era impossível o trabalho, a remuneração do dia e conseqüentemente pagar o aluguel, era disso que se tratava a greve com motivo justificável reconhecido, inclusive, pelo Dr. Carijó, no entanto conforme a lei:
Art. 205. Seduzir, ou alliciar, operarios e trabalhadores para deixarem os estabelecimentos em que forem empregados, sob promessa de recompensa, ou ameaça de algum mal:
Penas ? de prisão cellular por um a três mezes e multa de 200$ a 500$000.
Art. 206. Causar, ou provocar, cessação ou suspensão de trabalho, para impor aos operarios ou patrões augmento ou diminuição de serviço ou salario:
Pena ? de prisão cellular por um a três mezes.[8]

A movimentação dos operários por reivindicação de direitos se iniciou neste período, ela demonstrava sua força como fruto do intercâmbio de idéias provenientes, principalmente, da experiência de imigrantes europeus de correntes socialista ou anarquistas. Conforme o historiador Hall Macdonald:
            No Rio de Janeiro, uma grande atividade trabalhista no início do século culminou, em 1903, na primeira greve geral do país, embora ela se tenha restringido ao âmbito da cidade. Esse movimento foi,no início, apenas uma paralisação dos operários têxteis, que reivindicavam um aumento salarial e redução da jornada de trabalho, mas a greve estendeu-se mais tarde a outros setores[9].”

Apesar da citação se referir ao início do século e à cidade, cabe nesta historiografia o registro suburbano da greve banguense como participante da ginástica revolucionária[10].
Estes episódios transmitem a riqueza da história do bairro operário que vai além do futebol e da memória de ser parte do percurso de Dom Pedro I para se encontrar com a amante marquesa de Santos. Utilizando-se de curiosidade e buscando as pistas conforme o método indiciário de Carlo Ginzburg é possível ultrapassar a superficialidade das narrativas dos livros didáticos e confrontar algumas fontes com a historiografia nacional e mais abrangente demonstrando a necessidade de estudar a reação da sociedade suburbana frente aos eventos políticos que marcaram o país neste período tão conturbado, abrindo assim espaço para outras pesquisas.

 Daniel F. Carvalho graduando em História pela UFRJ.

Ao citar, por favor indicar-me como Fonte.



[1] Moraes, José G. Vinci de, História Geral e Brasil, São Paulo, Editora: Atual,2003. Pg. 279
[2] Elias, Rodrigo; Scarrone, Marcello.Quando o Império morreu de sede. Disponível em < http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/quando-o-imperio-morreu-de-sede> Acesso em 21 de Fevereiro de 2016.
[3] Alves, Gracilda. Bangu 100 Anos; a fábrica e o bairro, Rio de Janeiro, sabiá produções artísticas, 1989. Pg.22
[4] Periódico em circulação no período, acervo disponível na biblioteca nacional pelo site < http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/>
[5] Op. Cit. p.26
[6] Op. Cit. p.27
[7] Carvalho, José. Os Bestializados, São Paulo, Companhia das Letras, 2014, p.45
[8] Brasil, Decreto lei Nº847 de 11 de Outubro de 1890, Promulga o código Penal, Rio de Janeiro, 1890.
[9]
HALL, Michael McDonald; A classe trabalhadora urbana e os primeiros movimentos trabalhistas na América Latina, 1880-1930., 03/2002, "História da América Latina", Capítulo, ed. 1, EDUSP, Vol. IV, pp. 60, pp.1-60, 2002

[10] conceito abordado pelo historiador na análise das greves dos anarco-sindicalistas que entendiam que no curso de tais lutas, os trabalhadores poderiam vir a entender o poder de que dispunham e desenvolver seu espírito de solidariedade e de militância.

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